(Fonte da imagem: Marcelo Justo/Folhapress)
1. A Folha de S. Paulo noticiou que a OAB/SP divulgou nota pedindo a censura da "Série Inimigos" do artista Gil Vicente, que fará (ou faria) parte da Bienal de São Paulo. Na série, o artista "retrata a si mesmo matando personagens famosos como Fernando Henrique Cardoso e Lula". Segundo a OAB, "Uma obra de arte, embora livremente e sem limites expresse a criatividade do seu autor, deve ter determinados limites para sua exposição pública. Um deles é não fazer apologia ao crime como estabelece a vedação inscrita no Código Penal Brasileiro."
2. O problema que se coloca é mais complicado do que parece à primeira vista. Um dos pressupostos básicos quando se analisa a censura é abandonar de imediato a visão de uma luta ideológica entre liberdade de expressão e repressão obscurantista. Como tentei mostrar no post anterior, liberdade de manifestacão e censura estão mais intrincados do que parece. A liberdade por vezes é uma forma mais eficaz de controle.
3. No caso em questão, a censura à obra é uma prova clara de seu poder, de seu impacto. Há um poema/nota de Joan Brossa sintomático a esse respeito: "A censura suprimiu nove poemas:/sinal de que os outros não valem nada" (a tradução, extraída daqui, é de Ronald Polito). Alberto Pimenta, no excelente artigo "Liberdade e aceitabilidade da obra de arte literária", lembra que escritores como Eça de Queirós e Alfred Döblin defendiam que a arte se submetesse à mesma censura que os demais escritos, "vendo nessa igualdade perante a lei a justificação da sua importância social e a manifestação da sua liberdade". (Há duas frases do Döblin citadas por Pimenta que são sensacionais: " 'A arte é sagrada' praticamente não significa outra coisa do que: o artista é um idiota, deixem-no falar à vontade"; " 'A arte é livre', quer dizer, é totalmente inofensiva, os senhores e as senhoras artistas podem escrever e pintar o que lhes apetecer..."). Dito de outro modo: a liberdade concedida ao artista ou à obra (em suma, à arte) muitas vezes significa apenas sua inoperância - isolada numa esfera "especial", a arte não deve produzir efeitos sobre o mundo "real". Nesse sentido, Lévi-Strauss afirmou que "a nossa civilização" concedeu à arte "o estatuto de parque nacional, com todas as vantagens e os inconvenientes relacionados com uma fórmula tão artificial; e é sobretudo o caso de tantos setores da vida social ainda não desbravados, onde, por indiferença ou impotência e sem que o mais das vezes saibamos por que, o pensamento selvagem continua a prosperar." Comentando essa idéia da arte como "parque natural ou reserva ecológica no interior do pensamento domesticado", Eduardo Viveiros de Castro apontará justamente o que implica tal confinamento: "O pensamento selvagem foi confinado oficialmente ao domínio da arte; fora dali, ele seria clandestino ou 'alternativo'. Valorizada como seja a experiência artística, ela nada tem a ver com o experimento científico: a arte é inferior à ciência como produtora de conhecimento. Ela pode ser emocionalmente superior, mas não é epistemologicamente superior." (É curioso notar que Paulo Leminski também usou a expressão "reserva ecológica" para se referir à arte; mas no seu caso, referia-se ao mercado: a arte seria uma "reserva ecológica" onde o mercado não entra). A liberdade que existe na arte não existe na vida. É por esta separação entre arte e vida estar tão bem acabada que Alain Badiou pôde afirmar que "Convencido de controlar a superfície inteira do visível e do audível pelas leis comerciais da circulação e pelas leis democráticas da comunicação, o Império não censura mais nada".
4. A justificativa da OAB para reivindicar a censura é de que as obras "demonstra [sic] um desrespeito pelas instituições que tais pessoas representam, como também o desprezo pelo poder instituído, incitando ao crime e à violência." Ou seja, as obras produziriam efeitos para além da "reserva ecológica" onde deveriam se confinar. Quando a teoria política moderna (a partir de Bodin, a quem se atribui o conceito de soberania que caracteriza o Estado) "redescobre" a censura romana, é sempre a função de controlar os efeitos que é ressaltada: ao censor cabe policiar aquelas ações ou manifestações que não são contrárias às leis, mas que disseminam maus-exemplos, que espalham vícios, que corroem os costumes - pequenos gestos ou palavras que vão minando a constituição política, possibilitando a sedição e a ruína do Estado. (Algo parecido se pode encontrar já em Platão para quem os poetas causariam a efeminação dos homens, e, assim, fariam ruir o edificio de sustentação da República).
5. Nesse sentido, a liberdade da arte é a liberdade da arte enquanto obra de arte. Se ela produz efeitos "não-estéticos", "não-contemplativos", se ela impulsiona ou pode impulsionar à ação, ela não está mais garantida pela liberdade. Aliás, com a liberdade de manifestação ou expressão em geral é assim. Os professores de Direito adoram dar como exemplo de uma manifestação que não é protegida pela liberdade de expressão o do sujeito que grita "Fogo!" em um teatro lotado sem que este esteja, de fato, pegando fogo. A jurisprudência americana diferencia entre expression e conduct: aquela é garantida constitucionalmente, mas quando se torna conduta (isto é, quando conduz) pode caracterizar crime: quando um líder da KKK vocifera em um comício "Vamos queimar negros" é crime; quando ele diz apenas "Vamos proteger os direitos da minoria branca" é apenas manifestação (isso tem a ver com a dimensão formal do Direito - e vem de longe: há um texto de um retórico grego antigo que relata como um caluniador se safa porque acusou o outro de ter "matado" - termo genérico - um terceiro e não de tê-lo "assassinado" - termo jurídico). Aqui pouco importa a intenção do autor (nisso, o Direito está anos-luz à frente da crítica literária: na Inglaterra, já partir do século XVII, o que o autor pretendeu não é avaliado pelas cortes, e sim os efeitos que a obra gerou).
6. Como o grande propósito da censura é evitar que certos atos, gestos, palavras produzam efeitos nefastos, ela se depara, desde sempre, com um paradoxo: censurar uma obra muitas vezes equivale a dotá-la de uma aura sagrada de proibição, tornando-a mais famosa. Na tentativa de evitar a produção de efeitos, estes se potencializam. Quando Milton, no seu famoso discurso perante o Parlamento britânico, defende a liberdade de impressão, este é um de seus argumentos. Alguns séculos depois, Marx dirá o mesmo: a censura não só é uma "medida policial", mas uma "má medida policial": "No país da censura, cada escrito proibido - isto é, impresso sem o censor - é um sucesso. Passa por mártir, e não existem mártires sem auréola e sem seguidores devotos. Passa por exceção, e, quanto maior for o valor que a liberdade tem para o homem, mais tornar-se-á uma exceção para a falta de liberdade geral. Todos os mistérios corrompem. Quando a opinião pública é um mistério para si mesma, é corrompida desde o inicio por todos os escritos que rompem formalmente as misteriosas cadeias. A censura transforma todos os escritos proibidos, bons ou ruins, em artigos extraordinários, enquanto a liberdade de imprensa priva todos os artigos de uma importância especial". Ou seja, às vezes é a própria censura que cria e amplifica os efeitos que queria eliminar. Pode-se dizer isso do pedido de censura da OAB: tirou a obra de Gil Vicente do confinamento do "parque natural" da arte, do parque de diversões que é a Bienal, trazendo-a para a seara política.
7. Há ainda mais um elemento, talvez o mais óbvio de todos, a saber, que a obra de Gil Vicente tinha o intuito de trazer a discussão sobre a relação entre arte e política para o centro do debate. O problema é que o tempo passa, mas continuamos andando em círculos. Há dois anos atrás, o centro do debate sobre a Bienal era a ação dos pixadores - e sua criminalização. Hoje, é a censura à Gil Vicente. Até quando a estética do choque vai ser necessária para que exista o debate da relação entre arte e política?
Interesante el artículo, acá dejé una primera traducción, habría que revisarla.
ResponderBorrarViendo las imágenes pensaba en la historia de Lucas Carrasco y Alfredo Leuco.
Eduardo.
Quizás esto lo pueda explicar D. Link; yo no atino a dilucidar la cuestión: Si en un texto (una novela, digamos; una buena novela o una novela de mierda, un best seller) un personaje asesina a Lula (por decir), y el asesinato se describe con lujo de detalles, no pasa nada: queda claro que se trata de una ficción. Pero con las imágenes (¡cuidado con las imágenes!) no sucede lo mismo: la mimesis, la "adequatio ad prototipum" pareciera no padecer ambiguedades de ninguna naturaleza: como si se estuviera ejecutando el acto, o planeándolo... Habría que ver, pero esto es una constante...
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