miércoles, 31 de octubre de 2007

Tiempos de Babel

Com este seu novo livro - Tempos de Babel. Destruição e anacronismo - , Raúl Antelo dá prosseguimento a um aventuroso percurso crítico que já quase completa sua terceira década e vem se singularizando cada vez mais no panorama dos estudos literários e culturais brasileiros. Argentino de nascimento, vivendo desde o início dos anos 1970 no Brasil (de início, em São Paulo, para o mestrado e o doutorado; posteriormente, em Florianópolis, onde é professor titular de Literatura Brasileira na UFSC), Antelo é hoje um dos mais inventivos críticos e teóricos da literatura e da arte em atividade nas Américas, sobretudo depois da publicação em espanhol, no ano passado, daquele que é, até agora, seu mais alto êxito, Maria con Marcel. Duchamp en los trópicos (ainda sem edição brasileira): eruditíssimo e inovador exercício de reconstrução crítico-historiográfica da modernidade latino-americana a partir de um destaque imprevisto, mas justo, às figuras emblemáticas de Marcel Duchamp - que morou alguns meses em Buenos Aires ao fim da Primeira Guerra Mundial - e de Maria Martins - que se envolveu amorosamente com Duchamp, em Nova York, no início dos anos 1940.
Semelhante reconstrução, embora em escala menos ambiciosa, é executada no novo livro. Outra vez, Antelo põe-se a retraçar os intrincados itinerários da formação da modernidade periférica (ou, melhor dito, deslocada: pois que toda modernidade é da ordem do deslocamento, pondo em questão noções como centro e periferia, global e local, alheio e próprio, estrangeiro e nacional). O ponto de partida, agora, não está mais no casal Duchamp-Maria, mas em outro personagem crucial do século 20, o filósofo Walter Benjamin: elege-se como ângulo de análise a teoria, por este esboçada, do "caráter destrutivo", ou ainda, em outras palavras (que são de Antelo), uma "teoria da modernidade enquanto destruição", a ser repensada para aquém e para além de Benjamin. Antelo começa por frisar que esta teoria "não é apenas datada como também localizada": "Pertence ao mundo das oposições dilemáticas de entre-guerras e se posiciona, ainda, entre Velho e Novo Mundo". O método da pesquisa, aqui, é o já conhecido de obras anteriores de Antelo: a aproximação muitas vezes abrupta, explorando-se antes o choque que a mediação, de objetos e fenômenos culturais em princípio muito distintos; a montagem de séries significantes ali onde até então só conseguíamos ver desordem e não-sentido. É assim que textos de Rua de mão única, de Benjamin, são relidos à luz do depoimento Nueve dibujos y una confesión, de Norah Borges (artista plástica, irmã do escritor Jorge Luis Borges), a partir do realce de um comum interesse por "um conjunto de objetos perdidos e de objetos achados na memória", objetos-testemunhos da destruição a que todas as coisas, nesta concepção da modernidade, parecem estar destinadas. O avizinhamento entre o pensador judeu-alemão e a artista argentina revela-se menos arbitrário do que podia parecer à primeira vista quando Antelo lembra a resenha que Benjamin escreveu do livro O circo, do espanhol Ramón Gómez de la Serna, escritor reconhecido pelos "vanguardistas do Prata" - entre os quais, Norah e seu irmão - "como o mais radical representante do novo".
A menção a Gómez de la Serna funciona menos como o realce de um ponto de comunicação entre modernismo hispano-americano e modernismo europeu do que como marcação de um ponto de fuga - que é também, e sobretudo, um olho de redemoinho - para o amplo mosaico montado no breve, intenso livro. Nomes como os de Oliverio Girondo, Macedónio Fernández, Almada Negreiros, Valéry Larbaud, Hermann von Keyserling, Eugenio dOrs, Franz Kafka, Paul Klee, Rainer Maria Rilke, Gustav Glück, e tantos outros, vão se sucedendo nas páginas, numa forma de escrita que, em certos momentos, flerta abertamente com a associação livre da psicanálise e do surrealismo (duas matrizes teóricas fundamentais para Benjamin), mas com a meta claramente enunciada (mas, a rigor, infinitamente diferível) de definir os limites da teoria da modernidade como destruição. Esta teoria tomou a forma, no trabalho de Benjamin, de um "modelo expressionista de forças em confronto", o qual, conforme explica Antelo, visava substituir o modelo "vertical" de conhecimento (e poder) característico do Iluminismo. É contra este fundo que Antelo relê um texto central - mas muitas vezes esquecido, voluntária ou involuntariamente - da bibliografia ativa de Benjamin: seu nietzschiano ensaio sobre O caráter destrutivo. Corretamente, Antelo vê o caráter destrutivo, cuja fisionomia o filósofo delineou a partir dos traços de seu amigo banqueiro Gustav Glück (e provavelmente também do dramaturgo Bertolt Brecht, outro amigo seu), como complementar ao caráter melancólico tão mais identificado, de hábito, com a obra benjaminiana. Enquanto o caráter melancólico denuncia-se pelo retraimento meditativo, o caráter destrutivo, diz Benjamin, "só conhece um lema: criar espaço". Em contraste com a melancolia, que consiste num apego patológico àquilo que se perdeu e às marcas residuais que deixou (daí que a ruína e a caveira, embora índices de destruição, sejam figuras por excelência da disposição melancólica), o caráter destrutivo "elimina até mesmo os vestígios da destruição". Não será uma demasia constatar que uma dialética definidora do pensamento de Benjamin está dada de modo exemplar na tensão indecidível entre melancolia e destruição. E que só à luz desta tensa dialética compreendemos sua radical ambivalência diante da tradição (e da aura, este contravestígio imaterial inerente à arte tradicional mas que só se revela à vera no declínio e na destruição). "Alguns" - escreve Benjamin - "transmitem as coisas, tornando-as intocáveis e conservando-as; outros transmitem as situações, tornando-as manejáveis e liquidando-as. Estes são os chamados destrutivos." Antelo comenta: "O destruidor reage, em suma, a uma constelação de perigos que ameaçam tanto aquilo que é transmitido pela tradição, quanto aquele que recolhe essa mesma tradição".
A arriscada perspectiva histórico-crítica estabelecida por Benjamin é tomada por Antelo como modelo epistemológico. Pelo viés da destruição (e da "história materialista" adequada à sua dinâmica), "o objeto da crítica cultural" - ou, dito mais simplesmente, "o objeto cultural" - nunca está dado de antemão, mas se constitui "na desintegração da própria continuidade histórica". "Para que serve a história da arte?", pergunta o filósofo Georges Didi-Huberman na epígrafe escolhida por Antelo. A resposta, pouco trivial: "Para muito pouco, se ela se satisfaz com classificar sabiamente objetos já conhecidos, já reconhecidos. Para muito mais, se ela consegue colocar o não-saber no centro de sua problemática e tornar essa problemática a antecipação, a abertura de um novo saber, de uma forma nova do saber, ou até mesmo da ação". Para entendermos o que está em questão na prática crítica de Antelo, não só neste livro mas em todos os seus textos, é importante ler aquilo que se segue ao trecho feito epígrafe: Didi-Huberman observa aí que a "grandeza" do historiador Carl Einstein (que, em Devant le temps, ele examina, a par de Benjamin, como desbravador de uma nova história anacrônica da arte: uma história atenta às heterogêneas temporalidades constitutivas dos próprios objetos artísticos) não estava na habilidade de classificar ou interpretar melhor que outros estudiosos "objetos já integrados ao corpus da história", mas na capacidade de inventar novos objetos. Palavras que valem do mesmo modo para Antelo, que bem sabe que toda invenção é a contraface de uma destruição.

por Eduardo Sterzi para Diario Catarinense (Florianopolis: 27.10.2007)

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