jueves, 14 de diciembre de 2006

Dicen que...

Beatriz Sarlo, autoridade esgrimida por Moraña para propor essa leitura ainda iluminista, até mesmo legisladora, de "O etnógrafo" [de Jorge Luis Borges], embora sem renunciar a teorizar "acerca de su condición y su cultura", Sarlo, dizia, renuncia, porém, "a articular para el otro y por el otro una posición de discurso" e, nesse sentido, acaba de nos propor uma alternativa interessante de examinarmos aqui. Com efeito, numa certa reviravolta conceitual, em "Sujetos y tecnologia. La novela después de la historia", ensaio publicado em sua revista, Punto de vista, ainda em dezembro de 2006, Sarlo argumenta que, se o passado recente obcecou os anos oitenta, o presente é o tempo da literatura que se está escrevendo precisamente hoje. Esse presente não é mais um enigma modernista mas um cenário a ser representado: "si la novela de los 80 fue interpretativa, una línea visible de la novela actual es etnográfica". Sarlo tenta então não absolutizar os dois extremos e irrita-se de só pensar em listas de duas colunas com textos interpretativos ou etnográficos enfrentados entre si. Prefere pensar que as interpretações do passado já não são mais relevantes para a nova escritura, por apostarem a um todo, a um conjunto comunitário e que, entretanto, na atual posição etnográfica, prevalece a singularidade da particularidade absoluta. O exemplo, obviamente, são alguns textos de César Aira, em que a imaginação etnográfica opera uma reconstrução mais conjuntural do presente. Não é a miséria epicamente explorada pelo realismo de Os capitães de areia, o texto de Amado, por exemplo, mas são os catadores de lixo, o Real do atual capitalismo, o que Aira configura como novas personagens desse cenário. Eles são a moda da nova modernidade. (È bem verdade que, assim raciocinando, Sarlo leva água ao moinho de Aira=dândi=moderno, tese que mereceria maior exame). Mas, de algum modo, Montserrat (2006), a última novela de Daniel Link, insere-se também nessa linhagem. Não só pela criação do cenário urbano decaído, mas também pela estética do abandono, que Link, aliás, compartilha com o precursor, Aira[1].
Longe de Arlt, de Borges, de Bopp ou de Andrade, a estética do abandono opõe-se, simultâneamente, à clássica narrativa moderna em suas duas principais variantes[2].
Portanto, Sarlo conclui, aderindo aliás à tese anteriormente apresentada por Sérgio Chejfec, em um dos ensaios de El punto vacilante (2005), que Aira é um mestre no abandono da trama. Em outras palavras, contrariamente àqueles índios de Iquitos, que recusavam a fábula decaída de Mário de Andrade, o narrador das novelas de Aira, ou mesmo o de Montserrat, revela-se cansado de sustentar uma trama moderna e interpretativa de uma totalidade. O título, precisamente, de uma dessas ficções de Aira, Yo era una chica moderna, proclama, assim, que este narrador do presente é, à sua maneira, um turista aprendiz de si mesmo.
De idêntico modo, poderíamos pensar que o melhor leitor, entre nós, da relação etnográfica, tal como colocada por Borges e aclimatada por Aira, é Bernardo Carvalho. Nove noites (2002) é, como sabemos, reatamento da exploração pós-crítica de Borges, tomando como matéria o suicídio do etnógrafo americano Buell Quain, entre os índios khanô, no interior do Brasil. O mesmo se dá em um relato menor, "Bernanos dançando no paraíso" (2005). A moldura?a morte e a literatura; Quain, Bernanos e Carvalho?é simétrica, situada entre duas guerras, a de 1939 e a de 2001. São duas e a mesma guerra. Tais relatos, portanto, giram em torno de três idéias centrais. Em primeiro lugar, a de que a originalidade não é, a rigor, um valor. A seguir, a noção de que a subjetividade não é mesmo expressão, ela é, fundamentalmente, construção e, por último, consciente de que o real nunca é suficientemente real no plano da ação, no fluxo da história, o narrador chega, então, à conclusão de que a arte também não se sente suficientemente artística no plano da dicção. Em sintonia com a tese do nominalismo pictural de Th. de Duve, poderíamos então pensar, com Badiou, que a literatura do presente, mediante a axiomática e o formalismo, revela uma incontida paixão do real[3]
As dobras do texto turista, o texto que viaja ao redor de si, nos revela, enfim, o rosto lacerado do modernismo tardio, através de um desdobramento, sem fundador nem origem, que, legitimamente, pretende aspirar à condição de catástrofe discursiva, sem dentro, nem fora, colocando-se como um estranho a ambas as esferas, simultaneamente. É a partir desse vazio -creio- que o presente pode ser, precariamente, figurado.



[1] Cf. ANTELO, Raul - "A estética do abandono" in RESENDE, Beatriz (ed.) .A literatura latino-americana no século XXI. Rio de Janeiro, Aeroplano, 2005, p.111-140.

[2] SARLO, Beatriz - "Sujetos y tecnología. La novela después de la historia". Punto de vista, nº 86, Buenos Aires, dez 2006, p.3-4.

[3] BADIOU, Alain - El siglo. Trad. Horacio Pons. Buenos Aires, Manantial, 2005, p.75-76.



"A catástrofe do turista e o rosto lacerado do modernismo", texto de Raúl Antelo, un fragmento del cual se reproduce, fue presentado en el Colóquio Pós-crítica. Universidade Federal de Santa Catarina, dezembro 2006.

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